Wednesday, August 30, 2006

 

Cristiano Romero no Valor

O governo Lula e as regras do jogo

Cristiano Romero

30/08/2006

Quando, em fevereiro de 2003, o presidente Lula declarou que "o poder político havia sido terceirizado", ele se referia ao papel das agências reguladoras na economia brasileira. O que se viu depois disso foi uma sucessão de tentativas para enfraquecer as agências e levar, para dentro dos ministérios, a regulação de alguns setores.


O que levou Lula a dar aquela declaração foi o reajuste das tarifas de telefonia autorizado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Como os contratos firmados à época da privatização das teles tinham cláusula de correção baseada em índices de preços atrelados ao câmbio, e entre 2002 e 2003 o real sofreu forte desvalorização, a correção das tarifas causou grande comoção. O presidente não gostou de saber do aumento pelos jornais.

Nos anos seguintes, como a taxa de câmbio caminhou na direção inversa àquela, pouco se falou do "problema" das tarifas. Ainda assim, o governo Lula decidiu avançar sobre o modelo regulatório deixado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

Depois de ensaiar um rompimento de contrato no episódio da telefonia, evitado por obra e arte do ex-ministro Antonio Palocci, o governo indicou políticos e sindicalistas para postos de comando nas agências e, em abril de 2004, elaborou projeto, propondo uma espécie de lei geral das agências reguladoras. O caso Anatel é paradigmático da nova mentalidade: em três anos e meio, a agência teve quatro presidentes. O episódio mais recente é o da anunciada intervenção do ministro Hélio Costa.

O projeto de lei institui o chamado "controle social" sobre as agências; transfere parte de suas atribuições - especialmente, o poder de outorga - aos ministérios; retira-lhes a formulação de políticas públicas - exercida, na verdade, pelo Congresso na aprovação de leis para cada setor -; estabelece contratos de gestão. No fundo, o que se busca é acabar com a independência das agências e fazer delas órgãos auxiliares do governo.

Trata-se de um contra-senso. Cada setor de infra-estrutura tem suas especificidades. "FHC acertou na mosca quando decidiu fazer a regulação por setor. Não dá para fazer uma lei genérica para todas as agências porque estamos falando de setores com tecnologias, características e falhas de mercado muito distintas. A lei tem que dizer como cada falha de mercado será tratada pelo Estado brasileiro de forma institucional", opina Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da FGV.

Quando o governo anterior criou as agências, o objetivo foi justamente criar um marco regulatório à luz da nova realidade trazida pelas privatizações. Na transição de uma economia autárquica para uma de mercado, a existência de regras claras e estáveis é crucial para que os investidores privados assumam, no setor produtivo, o papel que antes era do Estado. Nesse contexto, cabe a agências reguladoras independentes zelar pelo cumprimento das leis e, portanto, das regas do jogo.


Intervenção em agências prejudica investimento


Os setores de infra-estrutura demandam investimentos vultosos, com maturidade de longo prazo. O investidor privado só aplica seus recursos se tiver garantia de que o dinheiro investido terá retorno. "O setor de energia elétrica, por exemplo. Quem for construir uma hidrelétrica precisa saber exatamente quanto vai ser a energia daqui a dez anos. Se a hidrelétrica ficasse pronta amanhã e eu já tivesse lucro, tudo bem. Mas, não é assim", pondera Schymura.

Se o investidor depende do ministério, o risco de instabilidade é grande. O governo faz uma licitação, estipulando regras. Vem o governo seguinte e resolve que aquelas regras não foram bem-feitas, que as tarifas dadas àquela empresa estão muito altas. "A decisão do investidor é: ou ele investe num setor em que o retorno é rápido ou então sai do país", adverte o economista.

Curiosamente, uma das alegações do governo Lula é que, no modelo atual, as agências correm o risco de serem capturadas por interesses privados. Ocorre que, no modelo em que as decisões são dos ministérios, o risco de captura é total. Pode se dar diretamente por meio de empresas interessadas em determinada regulação ou de grupos políticos, a serviço dessas empresas. "O Brasil estava partindo de um modelo de agência que distancia mais o governo das empresas", sustenta Schymura.

O diretor do IBRE, que foi a primeira vítima do intervencionismo do governo Lula nas agências - ele presidia, em 2003, a Anatel -, acredita que a grande vantagem do modelo das agências reguladoras está no fato de seus dirigentes não terem mandatos superpostos. Trata-se de uma regra que, na prática, dá previsibilidade, na medida em que, ao fim de um mandato, um governo, por meio de suas indicações, pode influenciar fortemente as decisões das agências.

O presidente indica um primeiro conselheiro, mas eles são cinco, explica Schymura Esse primeiro vai aprender como a agência funciona e, depois, ele sinaliza para o mercado o que pensa sobre o que deve acontecer dali em diante. Mas ele é um no total de cinco votos. No segundo ano do mandato, o presidente indica o segundo conselheiro - agora, são dois em cinco. Só no terceiro ano é que ele terá a maioria. Isso dá tempo para as empresas do setor se adaptarem ao novo cenário.

"Obviamente, isso, por si só, não resolve os problemas porque, se um governo ou mesmo a sociedade não está imbuída do espírito de respeitar os contratos de longo prazo, não adianta ter uma agência com mandatos. Passam-se dois, três anos, e muda-se a regra do jogo completamente. Mas, essa é uma base muito importante para dar um mínimo de tranqüilidade ao investidor", explica Schymura.

O resultado da névoa criada na regulação é uma só: menos disposição dos empresários em investir, num momento em que o país necessita desesperadamente de investimentos para crescer mais. "Quando a Anatel deu aquele reajuste em 2003, foi dito que era para defender os investimentos que as empresas fizeram no Brasil. Na verdade, isso pouco importa. A minha preocupação na época foi sinalizar para o resto do mundo que o Brasil é um país sério. O que me preocupa é o investimento que vem", explica o economista.

Tuesday, August 29, 2006

 

Zila Mamede 1953

SONETO TRISTE PARA MINHA INFÂNCIA

De silêncios me fiz, e de agonia
vi, crescente, meu rosto saturado.
Tudo de mágoa e dor, tudo jazia
nos meus braços de infante degredado.

Culpa não tinha a voz que em mim nascia
pedindo esses desejos - sonho ousado
por onde o meu olhar navegaria
de cores e de anseios penetrado.

Buscava uma beleza antecipada
- a condição mais pura de harmonia
nessa infância de medos tatuada,

querendo-me em beber de inacabada
procura que, em meu ser, superaria
a minha triste infância renegada.

Thursday, August 17, 2006

 

Auto-Engano

(Passagem totalmente Jamesiana do livro “Auto-Engano” do Eduardo Giannetti da Fonseca que como grande economista é melhor filósofo ainda. Pelo menos não vi aqui na Banânia alguém tão lúcido e com tamanha destreza e rigor intelectual.)

A Força do Acreditar como Critério de Verdade

Sonhar e acreditar no sonho são o sal da vida. Não há nada de errado, em princípio, em apostar alto na vida privada ou na vida pública, correr o risco no amor, nos negócios, na arte ou no que for o caso. O comportamento exploratório – ousar o novo, tentar o não tentado, pensar o impensável – é a fonte de toda mudança, de todo avanço e da ambição individual e coletiva de viver melhor. Viver na retranca, sem esperança e sem aventura, não leva ao desastre, é verdade, mas também não leva a nada. Pior: leva ao nada da resignação amarga e acomodada que é a morte em vida – o niilismo entediado, inerte e absurdo do “cadáver adiado que procria.”

O problema não está em sonhar e apostar, mas na qualidade do sonho e jna natureza da aposta. O melhor dos mundos seria combinar o ideal prático da coragem das nossas convicções, quando se trata de agir, com o ideal epistêmico da máxima frieza e distanciamento para atacar e rever nossas convicções, quando se trata de pensar. É o que propõe, de certo modo, Goethe: “Existe uma reflexão entusiástica que é do maior valor, contanto que o homem não se deixe arrebatar por ela”. Uma quadratura virtuosa do círculo: a paixão medida.

A dificuldade reside em viver à altura dessa exigência simultânea de entrega e autocontrole. Reconhecer, de um lado, que nada de grandioso se faz neste mundo sem entusiasmo e paixão, mas nem por isso aceitar, de outro, que a força da paixão e o ardor do entusiasmo se tornem critérios de verdade em nossa compreensão do mundo. Na vida pública, o duplo perigo é bem retratado pelo poeta irlandês Yeats: “Os melhores carecem de qualquer convicção, enquanto os piores estão repletos de apaixonada intensidade”. Para o indivíduo, o risco é análogo. As paixões medidas e analisadas esmorecem e definham, enquanto as paixões desmedidas e desgovernadas arrebatam e atropelam.

Aquilo que somos e aquilo que fazemos podem ter pouco a ver com aquilo que acreditamos ser ou estar fazendo. A pessoa movida por uma paixão poderosa, qualquer que ela seja, vive um momento de máxima força e máxima fragilidade. Suas certezas brilham e ofuscam. Sua autoconfiança revigora o ânimo mas tende a afogar a lucidez. A mesma confiança em si mesmo que move montanhas na vida pública e irriga o agreste na vida privada é o passaporte do auto-engano – verdades que mentem, pesadelos utópicos, quebra de confiança. O acreditar é aliado do instinto. Enquanto o homem, com sua malícia, está indo, a natureza, com a sua inocência, está voltando. É por isso que nossos desejos e metas, não importando quais sejam, têm o dom insinuante de se fazer justificar a si próprios para nós mesmos, inspirando-nos com as certezas íntimas, deliciosas e inabaláveis que nunca falham em justificá-los.

Não há nenhuma razão necessária para que o comportamento exploratório tenha que envolver alguma forma de auto-engano. As relações humanas são o que são: a paixão entre os sexos detesta a temperança e a paixão política tem horror à dúvida. Escrito ou aberto, o futuro é incerto. Nem todo erro, contudo, implica auto-engano. É a exacerbação da crença de que a verdade foi encontrada – de que as certezas e convicções que nos impelem à frente têm o valor cognitivo de uma revelaçãõ divina ou de um teorema geométrico – que trai a ocorrência de algum processo espontâneo e tortuoso de filtragem, contrabando e auto-engano. O passo fatal, do ponto de vista lógico, apesar de absolutamente natural sob uma ótica psicológica, é confundir calor com luz. É transformar a força e o brilho de uma crença – a intensidade do acreditar – em critério de verdade.

A quadratura do círculo é insidiosa e segue um padrão bem definido. Duvidar dói. Se a certeza que me toma é tão íntima, veemente e arrebatadora, então ela só pode ser verdadeira. Se o meu entusiasmo pela causa é tão intenso e as convicções que me movem à frente são tão fortes, então elas não podem ser falsas. Tudo em mim conspira para atribuir à causa que esposo e às convicções que giram em torno dela a legitimidade e a racionalidade de verdades inescapáveis. Autoridade para tanto, jamais me falta. Minhas promessas e análises, por mais delirantes que possam parecer aos incautos ou aos não-iniciados, são frutos da inspiração superior, da dialética profunda ou do mais absoluto rigor científico. Que ninguém se iluda: quem soubesse o que sei e sentisse o que sinto fatalmente chegaria às mesmas conclusões.

Seria exagero, é certo, supor que quanto maior a intensidade de uma crença, menor a probabilidade de que ela seja verdadeira. Mas o envolvimento de emoções poderosas no processo de formação de crenças é razão de sobra para que se proceda com a máxima cautela. Todo cuidado é pouco. O brilho intenso ofusca e o calor é inimigo da luz. Crenças saturadas de desejo podem ser verdadeiras, falsas ou indecidíveis. Mas o simples fato de que estão saturadas de desejo é sinal de que temos um enorme interesse – e ínfima isenção – na determinação do seu valor de verdade. Está aberta a porta dos fundos para a inocência culpada de resultados que escarnecem brutalmente de nossas intenções.

A força do acreditar, é verdade, faz milagres. Mas isso não a torna critério de verdade., assim como a disposição a resistir e agüentar todo tipo de perseguição em nome de um ideal revela, sim, bravura, mas nada nos diz sobre a validade da causa em jogo de um ponto de vista ético. A confusão, no entanto, é tão freqüente como sedutora, e nossa capacidade de resistir a ela na vida prática é variável e limitada. As mentiras que contamos para nós mesmos não trazem estampadas na fronte as suas credenciais. A análise dos caminhos suaves do auto-engano ajuda a elucidar o enigma do sofrimento que tantas vezes nos causamos a nós mesmos e uns aos outros – a metamorfose de promessas sinceras em traições obscenas na vida privada e a alquimia de certezas contagiantes em equívocos monstruosos na vida pública.

O princípio da complementaridade na física quântica reza que “uma grande verdade é uma afirmação cujo contrário é também uma grande verdade”. O poeta Hölderlin afirma que “o homem é um deus quando sonha, um mendigo quando reflete”. Sob a ótica do auto-engano, contudo, o contrário dessa grande verdade não é menos verdadeiro: o homem é um mendigo quando sonha, mas compartilha algo do divino quando reflete.

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