Monday, July 24, 2006

 

Beato Salu Mitterrand

O ÚLTIMO MITTERRAND

Por Beato Salu

"O Último Mitterrand" (Le Promeneur du Champ de Mars), de Robert Guédiguian, baseado no livro homônimo de Georges-Marc Benamou, é pluridimensional: idéias, biografias auto e hetero, a vida privada dos homens públicos, a intersecção entre indivíduo e História, os (des)caminhos do socialismo e a falta de alternativas ideológicas na globalização, ecos de Lear ou Henrique V e os detalhes nada Shakesperianos da inautocrítica e da decadência física de François Mitterrand, presidente da França entre 1981 e 1995, um pouco de tudo num filme que interessa mesmo a quem não souber tudo sobre a história recente da França.

Indicado do Festival de Cinema de Berlim de 2005, não foi tão bem recebido pela imprensa internacional. Mitterrand (Michel Bouquet, grande, grandioso), no round final contra um câncer na próstata, está nos estertores de uma luta, se não contra o esquecimento, ao menos por sua auto-imagem. Tenta aliciar o entrevistador para sua busca por fazer com que a França conserve dele uma imagem de estadista comparável a seu improvável (mas alegado) amigo De Gaulle. Esquiva-se repetidamente de comentar sua colaboração com o regime de Vichy e seu suposto anti-semitismo, e não chega a sofrer o golpe de ter de comentar sua coabitação com os partidos de direita e a expulsão dos ministros comunistas logo após sua ascensão à chefia de governo, sacrificando a ideologia no altar da governabilidade. Déjà vu?

Burguês de província, da France profonde, com a formação literária e humanista típica de seus pares, cita de memória vários escritores seus compatriotas de diferentes épocas, se diz o último dos grandes presidentes franceses — pois, vaticina depois dele virá, se não o dilúvio, apenas financistas e contadores. Lamenta o assassinato da idéia socialista, de quem foi o primeiro chefe de governo gaulês em muito tempo (bem depois do judeu Léon Blum, de quem ganha um retrato como presente de aniversário). É pungente com sinceridade em seu terror diante da decadência física e do mysterium magnum da morte, diante da qual todo poder e todo materialismo dialético é impotente. O jovem jornalista, por sua vez, se deslumbra com essa relação íntima com o poder encarnado, que se torna subitamente um pai ou um quase amigo — desses que, drummondianamente, secretamente influem na carne e nas paixões. Mitterrand comenta-lhe até as namoradas, dá conselhos: afinal, estão irmanados nessa Agincourt da construção do legado de Mitterrand, que se afina (se afinaria) com “o sonho comunista enraizado na Humanidade”, com a luta por “aqueles que sofrem”. O ainda presidente marca com uma pausa a admoestação de seu entrevistador esquerdista, de que “num mundo onde o dinheiro só gera dinheiro, a luta de classes retornará com mais força do que nunca”.

Narciso do poder, sua dimensão pequeno-burguesa o leva a maravilhar-se com a própria significação histórica: lembra que, dentre os governantes franceses, só Napoleão governou tanto tempo quanto ele. Seduz o entrevistador para a grande obra de construção de sua imagem pública, cala sem consentir sobre seus erros. Humano, rebela-se contra a degenerescência de seu corpo, as marcas do tempo e a fragilidade física: nu, concreta e metaforicamente, precisa de ajuda do repórter até para levantar-se de uma banheira.

Dá muito o que pensar. Mitterrand viveu a frustração de ver que o sonho socialista era só isso mesmo, sonho, irrealizável, e esteve no centro de vida política de uma ex-potência em pleno nadir da esquerda, quando começava a desmoronar o edifício erguido em anos de lutas de trabalhadores contra a exploração desumana desde a Revolução Industrial. Hoje, o próprio conflito capital-trabalho parece transcendido, pois supostamente todos são capitalistas, constituindo forçadamente sociedades para receber o pagamento de seu trabalho, até porque não há emprego, e os encargos sociais são intragáveis e ninguém quer pagar renda fixa a ninguém quando o lucro, além de variável por definição, é cada vez mais incerto. Quando o equilíbrio fiscal vira anátema de governo e os países antes em desenvolvimento se tornam mercados emergentes, os governantes ficam obsoletos, um banqueiro de investimentos dá conta do recado muito melhor. No fundo, quem preside a nação são os Presidentes do Banco Central, ágeis executivos com procuração do FMI, e não literatos grand seigneurs refestelados em poltronas do Eliseu.

Mitterrand assistiu de camarote à ascensão do sufrágio universal como moeda de troca contra os fascismos e o comunismo, mas não viveu para ver a decadência atual da democracia representativa, que chega no mesmo instante de seu apogeu. Antes, havia voto censitário, e senhoras não botavam o delas na urna. Nos primeiros anos depois que se democratizou o pleito, os populares recé-guindados à cidadania plena ainda elegiam representantes entre os membros da elite, mais afeitos às complexas tarefas da administração pública. Agora, elegem a si próprios, Lulas, Evos Morales, analfabetos, índios, com quê resultado? Parecem agora apenas babar de avidez, porque podem comer com suas próprias mãos gordas fatias do butim público. Nem o jacobinismo mais radical iria tão longe: o próprio Lênin era um grande cientista político de origens aristrocráticos que só renunciou à teoria revolucionária pela prática revolucionária, mas nos legou seu Imperialismo – Etapa Superior do Capitalismo e outros clássicos, lembrando que sem teoria só agitação sindical que em nada altera a essência do jogo da exploração capitalista. Marx criticava a fetichização dos trabalhadores, no que tinha razão: até por viver alienado do seu trabalho, o operário médio não é nada invejável: trepa sem camisinha com putas baratas, enche a cara de cachaça prá relaxar e embolacha a mulher. O verdadeiro socialismo consiste em transformá-lo num burguês como Mitterrand, citando Rimbaud, apreciando finas iguarias etc. E o que dizer da arte proletária? Funkeiros, DJS, popuzudas, intelectuais orgânicos da multinacional narcotraficante perdendo a linhae ganhando cada vez mais grana, enfim, uma profusão de idiotas rodriguianos, exultantes com a própria estultice e o dinheiro que não pára de jorrar. Do outro lado, supostamente legal, Robertos Carlos ajeitando meiões sem nenhuma emoção, indiferentes ao sofrimento de seus compatriotas, pois já venceram, e a lógica hoje é The winner takes all, e não renda para que muitos possam viver com um mínimo de decência e consumir a riqueza produzida. O que fazer? Quo vadis, Domine? A morte de Mitterrand está viva — e apavora.

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Free Web Site Counter
Free Counter