Wednesday, July 26, 2006

 

Na Baixa do Sapateiro de Madeira

DE OUDE KERK, AMSTELKRING, AMSTERDAM;
ONZE LIEVE VROUWE KERK, HEILIGBLOED BASILIEK, BRUGGE
E OUTROS TEMPLOS CRISTÃOS DE FLANDRES E HOLANDA

Gurdjieff falava de uma arte objetiva, que tocaria exatamente da mesma maneira a sensibilidade de quem quer que a observasse. Um exemplo de obra desse tipo seria a Notre Dame de Paris, e outras catedrais góticas. Seriam veículos de um conhecimento psicológico, verdadeiros livros em forma arquitetônica. Interessante pensar nisso quando comparo as diferentes reações que tive a duas catedrais góticas exteriormente semelhantes, a Oude Kerk, a velha igreja (de 1250) de Amsterdã, e a Igreja de Nossa Senhora, a Onze Lieve Vrouwekerk de Bruges, Bélgica.

Ambas têm a mesma arquitetura tipicamente gótica, o pé direito altíssimo, os vitrais característicos e as majestosas arcadas ogivais, imensas, que nos fazem sentirmos pequenos, num mundo onde o Altíssimo impera, solene. Algo, porém, as diferencia. De Oude Kerk fica meio deslocada, dessacralizada numa cidade protestante, não mais um templo de adoração, mas um museu a mais, simples ponto turístico; a rua em que está, a Oudezijds Voorburgwal, é hoje a principal artéria do vibrante, pulsante e latejante bairro da Luz Vermelha, o bairro dos sex shops com seus mil e um gadgets eróticos e das prostitutas oferecendo seus serviços nas vitrines como uma mercadoria a mais, sem falar nos Bulldogs e outros bares pra fumar uns muitos de todos os tipos, enfim, algo assim como uma Prado Júnior batava, A Velha Igreja templo esquecido nesse antro de perdição, que ela não eleva nem redime, e, que, ao que parece, ninguém condena, está mais para um plágio de si própria do que para verdadeira imersão no pecado, versão pervertida e turística de um desejo de liberdade, que algum dia se expressou de um modo próprio, real. Está vazia e quase morta a velha igreja neste fim de tarde de inverno holandês, com uns poucos turistas desanimados e recepcionistas com pressa de a fechar.

Outra é a sensação que tive em sua quase gêmea arquitetônica, a Onze Lieve Vrouwekerk de Bruges, construída também no século XIII nessa que foi a primeira grande cidade do capitalismo, chegando em seu apogeu a ser mais populosa que Londres, com sua manufaturas de linho no entroncamento das rotas do comércio ainda incipiente, mas que nos tiraria do torpor em que o mundo mergulhou desde a vitória de Alarico e seus Bárbaros Caps e da queda do Império Romano do Ocidente, Bruges que brilhou até entrar em decadência quando o Zwin, que a ligava ao Mar, assoreou e deixou de dar passagem aos navios, no século XV, mergulhando depois num longo abandono de que só sairia no século XIX, para depois sobreviver, como hoje, basicamente do turismo. De interior igualmente sóbrio e hierático como são os templos góticos, tem entre seus destaques uma Madonna com o Menino Jesus de Michelangelo. Não sei se porque quando cheguei lá o som na caixa eram magníficos hinos gregorianos, se porque o país é católico e a Igreja está viva, mas me emocionei profundamente, viajei na trip cristã gótico-medieval do temor a um Deus onipresente e onipotente, que tudo vê e que humilha o homem pretensioso que quer ser mais que Ele. De alguma maneira somos transportados para um outro tempo e para outras esferas, mais sagradas, nessa Igreja dessa cidade que também parece ter parado na Idade Média, paraíso comercial e religioso de uma próspera burguesia e um capitalismo nascente, com seus imponentes Burg e Mart, grandes praças com imensos prédios que eram o centro da vida da cidade quando grande centro comercial, cidade essa que guarda, na Basílica do Sangue Sagrado, uma relíquia do que seria o Sangue de Cristo, até hoje guardado com zelo por uma fiel Confraria.

Também há prazeres mais mundanos, chocolate quente servido por magras e altas garçonetes jovens e lourinhas, passear nas ruazinhas estreitas dessa que é como uma Ouro Preto do Primeiro Mundo, tomar as muitas cervejas locais de diferentes tipos num bar onde do nada surge um belga que começa a conversar conosco, eu misturando holandês, mau alemão e péssimo inglês, porque os flamengos se recusam a falar francês, só que apesar de eu ser Mengão o PlattDeutsch deles não é muito a minha, diz que a melhor cerveja belga é a Leffe, peço uma marrom, bruin, digo que gosto também da loura Hoegaarden e das feitas por monges trapistas, além da Duvel, ele discorda, pra ele a Leffe não tem pra ninguém, mas o barato mesmo é pensar na força do Cristianismo nesse lugar que é de outra Era, que sobrevive como se vindo diretamente de um passado muito distante, e ao mesmo tempo parece, nessa Igreja, além de todo tempo.

De certa maneira, mesmo no Museu Amstelkring a emoção é maior que na Oude Kerk. Também erigido (ou seria ereto ?) na Prado Júnior de Amsterdã, ele foi uma das poucas igrejas católicas clandestinas do tempo das guerras religiosas que sobreviveu. Nessa época de lutas de fé, o eterno espírito de tolerância neerlandês acabou chegando a uma solução de compromisso, como faz hoje com o “tóchico”, e os protestantes permitiram que os católicos continuassem a manter suas igrejas, desde que não tivessem sinais exteriores, não tocassem sinos etc. Muitos então fizeram igrejas de suas próprias casas, e essa foi a única que permaneceu até os nossos dias, a Ons’ Lieve Heer op Solder, a Igreja de Nosso Senhor do Sótão, onde ninguém vai chegar para a missa de domingo, é só um museu, mas é como se a qualquer momento os fiéis pudessem subir as escadas do estreito prédio e sentarem-se nas acanhadas cadeiras do sótão para louvar o Senhor à sua maneira, que lhes é tão cara: pois está tudo lá, o altar indefectível, imagens de santos, turíbulos, todos os fetiches pios da fé que os iconoclastas de Calvino, Lutero e Huss baniram, até mesmo um acanhado confessionário. Os sinos não dobrarão por ninguém, pois todos já se foram, nenhum carrilhão anunciará, orgulhoso, a boda de um casal ansioso, mas feliz, a Páscoa ou a Noite de Natal, nenhum badalo: mas é como se a congregação aqui de novo se reunisse, hoje e sempre, eternamente reunidos na sua fé, como se, teimosos, aqui voltassem para insistir em que também o Espírito precisa encarnar num corpo, porque a carne é necessária, quanto mais não seja para que o Verbo possa se fazer carne, e, assim, espiritualizar a matéria, o sutil descendo ao mundo grosseiro para depois elevá-lo na Glória, como o Filho Unigênito que o Senhor enviou a este mundo imundo para nos salvar, o Cordeiro de Deus que andou entre os lobos dos lobos dos homens e padeceu sob Pôncio Pilatos para tirar o pecado do mundo, cortou de sua carne e verteu seu sangue na Santa Ceia, no Mistério da Eucaristia, pedindo aos Apóstolos e a nós que por daí em diante sempre o fizéssemos, em memória Dele, que morreria na Cruz para nos salvar, ou mesmo a vela de que falava Teilhard de Chardin, feita de sebo vagabundo e barbante barato, mas que, acesa, mesmo assim pode conter a Luz, porque a Luz está em todo o lugar. Talvez para alguns não haja comunicação com o divino senão pelo cumprimento estrito desse ritual, pelo respeito fiel à hagiografia, pelo culto das imagens de fé: é pela matéria que tocam o espírito, pelos sentidos que roçam o inominável e o indizível, essa é a língua em que com Ele falam. Por isso, às vezes mais vale um sótão onde se podem celebrar cultos do que toda uma Catedral que só como estátua se conserva. Não surpreende: é lá que sua religião está viva, que Deus, diretamente, lhes fala. Muitos são os caminhos, mas só uma a Verdade: a casa do Pai tem muitas moradas, e seu Filho lá nos prepara lugar — pois quem n’Ele crê não morre, mas vive para a Vida Eterna. Amém. Regozijai, rejubilai-vos, pois, irmãos.

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Free Web Site Counter
Free Counter