Wednesday, July 26, 2006

 

Salu in Holland

RIJKSMUSEUM AMSTERDAM

Interessante pensar como há momentos na vida de um país em que ele parece florescer, em que tudo nele parece girar num grande círculo virtuoso, numa grande ereção nacional. Foram essas considerações sócio-políticas, mais do que as puramente estéticas, que me assaltaram em minha visita ao Museu Real de Amsterdã, onde vemos, além das grandes obras dos mestres holandeses do século XVII como Rembrandt e Vermeer, todo o retrato da opulência dessa Época de Ouro Holandesa, quando, ao final do séc. XVI, as sete províncias unidas protestantes se insurgiram contra o domínio católico dos Habsburgo espanhóis e formaram a República dos Países Baixos, separando-se, assim, do sul católico, que viria a ser a Bélgica e, separado depois desta, Luxemburgo, feito estado-tampão entre França e Alemanha.

Em cada canto do Museu está bem retratado o fausto dessa Era: as magníficas casas de boneca que fizeram a delícia das ricas burguesas da época — miniaturas minuciosas dos ricos interiores das mansões neerlandesas, mais que brinquedos de criança; uma reprodução de um navio de então; a rica faiança de Delft, imitação bem sucedida da porcelana chinesa, que os grandes navegadores-comerciantes-guerreiros holandeses conheceram; um berço que combina elementos ocidentais, como seu estrado quase gótico, e orientais, como a cabeça do Deus Hindu Ganesha, metade homem, metade elefante, que protege tudo aquilo que se inicia, para que chegue a bom termo _ onde dormiu o bebê de algum dirigente batavo mandado servir em Bengala. Vistas de Olinda de um Frans Post, que há muito já havia retornado à terra natal quando pintou o quadro, saudoso do Nederlands Brazilië, onde, em missão a serviço de João Maurício, o Conde de Nassau-Siegen, e junto com Albert Eckhout, fora o primeiro ocidental a pintar essa assombrosa parte do Novo Mundo, com sua fauna exótica, sua flora luxuriante, seus tupinambás e cafuzos, alguns para sempre selvagens, outros até convertidos à fé calvinista. Magníficos trabalhos em prata, e os muitos mosquetes e espadas desse povo que teve de lutar muito para afirmar sua independência política e a especificidade de sua cultura e religião, o mundo em que acreditavam, em que a autonomia, o empreendedorismo, e a tolerância religiosa eram os valores dominantes.

Fica claro que o que contemplamos não é só o fruto de cérebros privilegiados, mas antes a expressão de um movimento que tomou conta de toda essa parte do Ocidente nessa época: a fervorosa fé calvinista, que ia de par com uma mentalidade de livre iniciativa e abertura para o diálogo: que criou as primeiras sociedades anônimas, essas “máquinas jurídicas” como as chama Alfredo Lamy, que junto com Bulhões Pedreira redigiu o anteprojeto de nossa Lei das S.A., onde todos podiam ações das duas primeiras companhias abertas da história, as Companhias das Índias Orientais e Ocidentais. Embora fossem sociedades de economia mista, porque delas o Estado também participava, a subscrição dos papéis de sua emissão era um investimento altamente rentável, e por isso mesmo bastante popular, ao alcance de cidadãos comuns, tendo proporcionado retornos de 40% sobre o capital investido a alguns afortunados, cujos filhos puderam fazer carreira nas artes, livres das preocupações com a sobrevivência. Para lá acorreram muitos, para fugir de perseguições religiosas ou simplesmente fazer dinheiro, sobretudo aqueles do menos afortunado sul da região, ainda preso ao atraso católico ibérico, mas também huguenotes franceses e judeus sefarditas como os portugueses Isaac de Pinto, cuja mansão, a PintoHuis, é até hoje atração em Amsterdã, assim como a Sinagoga Portuguesa, lugar de adoração de uma comunidade que teve como seu membro mais famoso um filho de judeus com um nome tão tipicamente lusitano, Bento de Espinosa, que escreveria uma das obras filosóficas centrais até hoje, a Ética à Maneira dos Geômetras. Não tivessem seus pais fugido para a Holanda, e talvez Baruch Spinoza fosse ser ourives no Recife, abrir uma padaria em Salvador ou morrer nas fogueiras da Inquisição jesuítica. Em vez disso, foi prolífico, frutificou numa terra fértil para o pensamento, que por primeiro se tornou coisa pública, res publica num tempo de reis e rainhas absolutos (pois só depois o Lord Protector Oliver Cromwell faria na Inglaterra sua Revolução Gloriosa), alguns ainda feudais como os reis portugueses e sua corte de asseclas, tudo extraindo do Estado que viam como seu quintal, do qual podiam por e dispor, limitando-se a comandar os servos que deveriam se contentar em os bem servir.

Na luta por sua afirmação nacional, brigaram tanto os holandeses que acabaram perdendo sua preeminência, ficando atrás dos ingleses e franceses com quem tanto guerrearam, mas suplantando em muito seus antigos conquistadores ibéricos, aliados por laços dinásticos aos Habsburgo austríacos, que permaneceriam sempre um pouco à sombra das grandes transformações até que o Arquiduque Franz Ferdinand fosse assassinado em Sarajevo e desse início à Primeira e à Segunda e à Terceira Guerras Quentes e Frias Mundiais. Graças à ação dos holandeses, bem como por obra dos desmandos castelhanos na União Ibérica que se seguiu ao desaparecimento do Rei D. Sebastião em Alcácer-Quibir, Portugal perderia grande parte de seu império do Ultramar, ficando reduzido à colônia americana e às africanas, e a um e outro entreposto na Índia, China e Indonésia, com seus nomes que parecem interjeição de piada de português, Goa, Diu, Damão, Dili, Macau. Mesmo a América Portuguesa foi ameaçada, como se sabe, com o Brasil Holandês que teve sua capital em Olinda, mas que se estendia até o que hoje é o Maranhão. Um Brasil singular, mais urbano que rural numa época de plantação de gêneros tropicais em fazendas imensas, para a exportação e riqueza logo dissipada de seus donos, que apenas embolsavam o lucro conquistado com o suor do trabalho escravo, que também lavrou o ouro das Minas Geraes que a tributação escorchante logo confiscou, para depois entregar de bandeja de prata aos britânicos, colonizadores do colonizador, a quem deram guarida em sua desabalada carreira em fuga dos exércitos napoleônicos.

O resto é conhecido mesmo por quem não leu o Rubro Veio do Evaldo Cabral de Mello, irmão do João Cabral de Mello Neto, nem o Calabar do Chico Buarque de Hollanda com dois lls. Em Guararapes o sonho do Brasil Holandês acabou, nunca mais Pernambuco Paraíso Protestante, para sempre perdido nos tristes trópicos, abandonados à triste sina e o melancólico e deprê fado lusitano, novamente livre do jugo de Castela e seu flamenco feroz do qual sempre fugiram, o mar é a única sepultura digna de um almirante batavo, a maioria retornou à Holanda e alguns, judeus inclusive, fugiram para as Antilhas levando cana que plantaram com mais inteligência (aproveitando o bagaço como combustível, em vez de torrar madeira de lei para mover a moenda como aqui) e, mais ao Norte da América, fundaram Nieuuw Amsterdam, em torno da qual construíram um muro para se protegeram dos índios Manahata, e, perto dali, como na Holanda, fundaram Haarlem, que é uma espécie de Búzios de Amsterdã, cidade menor e mais próxima do Oceano. New Amsterdam se transformaria em New York, New York, I wanna be a part of it, a rua do Muro, Wall Street, no Harlem floresceria o jazz e onde um dos presidentes americanos mais populares abriria seu escritório; inspirado no Benelux (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, países que acabaram reunindo as antigas sete províncias protestantes e mais as dez católicas), surgiria a Comunidade Européia, que acabaria por soerguer até mesmo os antigos padrastos da Península, reunindo-os à Europa e à vanguarda da História, a ponto de tentarem um pouco até nos recolonizar com a mesada que receberam. Mas essa já é outra estória.

Mais tarde, na ReinassanceZaal de Brugse Vrije, em Bruges, Bélgica, eu veria, ao lado de Carlos V e dos diversos soberanos do período, o retrato familiar de um rei louro, que eu já vira na exposição dos pintores espanhóis do século XVI do MNBA do Rio de Janeiro: sim, era ele mesmo, Felipe II, que um dia reinou sobre Espanha, Portugal, Algarve e o que hoje são os três países do Benelux, esse pioneirismo mais uma prova da flexibilidade típica dos que estão abertos e atentos para responder às exigências sempre novas de uma vida que muda a cada momento, e mereceram por isso sediar, em Bruxelas, a Comunidade Européia, e em Haia, a Corte Internacional de Justiça, civilizadíssimas manifestações de povos que perceberam que a mesquinha soberania absoluta não dá mais pé num mundo transnacional, onde as soluções têm de ser supra-estatais. Sim, algum dia estivemos sob a mesma coroa, mas eles conseguiram se libertar desse soberano atraso, enquanto nós ficamos presos ao passadismo ibérico, já fora de época nesse mundo onde já se anunciavam as evoluções técnicas que redundariam no Capitalismo Industrial, que mais tarde suplantaria o Capitalismo Monopolista da plantation e do trabalho escravo, no qual a metrópole se limita a sugar colônias para lucrar vendendo caro o que produz barato, sem se preocupar nunca e produzir sempre mais e melhor, e se estabelecer no local da produção para comandá-la, fugindo da concorrência e da competência, deitando-se eternamente em redes psicológicas de uma preguiça crônica, refestelados para sempre em berço esplêndido, limitando-se, pachorrentos, a mandar fazer, a ordenar que outros e lavrassem ao sol inclemente, para explorar até a exaustão a terra tão inocente e generosa, na qual daria tudo o que se plantasse, destruindo sucessivamente a cana, o algodão, o tabaco, o ouro, diamantes, borracha e café, queimando o solo até torná-lo estéril como suas mentes, sem nunca se preocupar em adquirir know-how para produzir mais e melhor e sempre, ao contrário, condenando a negrada à sua própria estultice, quando não a matava de porrada, fome, ignorância e sexo forçado, buscando sempre se esconder do trem da história atrás de seus Pirineus geográficos ou mentais, na vã guarda do atraso.

Nossos distantes irmãos dos Países Baixos sofreriam algum baque com suas derrotas para ingleses, franceses e alemães, mas depois se reergueriam, e mesmo os belgas, embora continuando católicos, se transformariam em quase uma potência, apesar dos desmandos do Rei Leopoldo no Congo, que transformou em sua fazenda, o Zaire de que Conrad e Marlon Brando nos deram notícia, Apocalipse Now e sempre, lembrado hoje só por uma Kinshasa onde o imã Muhammad Ali deu um baile no pastor Foreman, e pelo terceiro gol da Valdomiro na Copa de 1974, “fingi que fui, não fui e acabei fondo”, e a última flor do Lácio se fudendo, inculta certamente, mas duvidosamente bela.

Ainda hoje, a Holanda, com seu ABN-AMRO Bank e sua Philips são o terceiro maior investidor no Brasil, e graças ao Rei Alberto da Bélgica foi fundada (para lhe dar o título de Doutor Honoris Causa) nossa primeira Universidade, a Universidade do Brasil e do Rei Alberto, monarca que Drummond (nome que vem do neerlandês arcaico “alta onda”, segundo o próprio) cantou em poema, Rei Alberto que muito se admirou com a sabedoria simples do Jeca Tatu, e cuja mulher virou nome de rua na divisa de Copacabana com Ipanema, a rua Rainha Elizabeth (da Bélgica, embora muita gente pense que é de sua homônima inglesa), não muito distante da leblonina Rainha Guilhermina, Koningin Wilhelmina amada de seu povo, tão firme na resistência contra os nazistas. Hoje, Flamengo é só o nome de meu time, o da camisa rubro-negra como duas das cores da bandeira tricolor belga (que tem ainda o ouro que os portugueses levaram daqui), nome esse que homenageia o bairro onde alguns filhos de Flandres se estabeleceram nos primórdios do Brasil-Colônia; o Maneken Pis de Bruxelas é só uma estátua na Praia perto de casa, e o símbolo do time rival que homenageia outro bairro. Holanda e Bélgica são apenas fotos no álbum de família, ou um retrato na parede — mas como doem!, sobretudo quando pensamos que talvez estejamos condenados a sermos sempre o país do futuro, um futuro que insiste em nunca se tornar presente, um povo perdido em seu Sebastianismo sem Sebastião, que jamais virá de Alcácer-Quibir alguma, os mouros venceram e já começam a se articular na Tríplice Fronteira que nunca será o triângulo do sexo ardente ou o orgasmo múltiplo masculino dos taoístas, e sim o eterno ocaso da América Católica Latrina do Mundo, pobre Extremo-Ocidente, filho reprimido e enjeitado da brochura careta ibérica.

Penso em tudo isso agora como pensei lá, enquanto via os quadros, até a hora em que meus olhos por último se fixaram na menina com brinco e turbante e na criada a despejar leite de Vermeer de Delft, retratos de um quotidiano registrado para a eternidade, flagrantes de um momento tão comum, mas que simultaneamente nada tem de banal, revelando-nos um dia de outro tempo, num instantâneo que é toda a eternidade. Os guardas do Museu nos avisam que está fechando, temos de ir embora, meus olhos úmidos se fixam num dos muitos detalhes da pintura de um pão que há muito já virou fungos dispersos no ar, mas cuja imagem bidimensional é mais real que os guardas e os velhos visitantes do museu, que um dia, como todos os homens, desaparecerão com sua tridimensionalidade vã e sua carne que será o alimento dos vermes, enquanto as imagens que os mestres viram e pintaram permanecerão, em memória deles e de seu grande país, mas também como um retrato da consciência, da vontade, de tudo o que mais pode o espírito humano, momentos de perfeição que são também fiéis retratos da realidade, instantâneos objetivos e puros da Verdade, que se eleva acima de toda ambição pessoal ou nacional, o divino encarnado que, quando apreendido, é a expressão da glória, ao mesmo tempo em que a transcende, além do ego, além de tudo, puro silêncio, vitória do Espírito que a um tempo afirma e nega a opulência material que, de certo modo, tornou possível sua manifestação, plenitude da imanência que facilita a transcendência, furor erótico que, satisfeito, se converte em fervor místico, corpo e alma, transubstanciação. As portas do RijksMuseum se fecham. Seis da tarde é alta noite no inverno batavo. Brilham as pedras brancas do jardim do Museu Real. Cai o pano.

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