Sunday, April 13, 2008

 

Resposta... Alexei....

CARTA-RESPOSTA A MARCELO MADUREIRA

Há indivíduos naturalmente inaptos à compreensão de certas expressões humanas, podendo ser brilhantes na compreensão e na criação de outras. Há cegos para arquitetura, surdos para a poesia, surdos para a música, cegos para o cinema, etc. Marcelo Madureira é um excelente humorista, e revela uma fabulosa verve e grande inteligência verbal em muitos momentos do seu Agamenon Mendes Pedreira. Em matéria de cinema, é incapaz, e pronto. Quem diz que Deus e o Diabo na Terra do Sol é chato, é um cego cinematográfico, e acabou. Humoristas e ironistas são useiros e vezeiros em falar besteiras sobre arte. Não vou dizer que Voltaire ou Bernard Shaw fossem burros, mas tudo o que Voltaire falou sobre Shakespeare ou Camões prova que ele, poeta hediondo, era perfeitamente surdo para poesia. Quanto a Bernard Shaw, com a sua boutade sobre "Saída em caso de Brahms" nas salas de concerto, a mesmíssima coisa. Quem não gosta de Brahms, quem acha Brahms "chato", é um surdo musical, é uma besta em matéria de compreensão de música e acabou. Quem acha "mal feito" ou "feito nas coxas" os filmes de uma precisão de mise-en-scène milagrosa, quase coreográfica, como os de Glauber, é um cego cinematográfico, é uma besta em matéria de compreender cinema, o que em nada afeta seus outros talentos e capacidades intelectuais. Para ser mais claro, é útil pegar um detalhe, uma só seqüência. Só como exemplo, quem quiser que reveja a do momento em que o Santo Sebastião sacrifica o bebê em Deus e o Diabo. O jogo de sombras cruzadas simplesmente sublime dessa cena, uma das mais cuidadas e precisas da história do cinema, só encontra paralelo no Ivan, o Terrível, de Eisenstein. É isso que é "feito nas coxas"? "Chato" pode ser, é subjetivo, mas "feito nas coxas"? O mesmo, mais um exemplo, com a seqüência da invasão da casa do Coronel Calazans, ou a incrível cena em que Antônio das Mortes é contratado para matar Sebastião, ou o diálogo imortal, no mercado da cidade deserta, entre o Cego Júlio e Antônio das Mortes. Deus e o Diabo é um dos filmes mais precisos do mundo, e por isso é um dos maiores filmes do mundo, do primeiro ao último plano. Em matéria de precisão, no cinema brasileiro, só Limite mantém a mesma grandeza absoluta. Isso é que é "mal feito"? As "alegorias primárias" só o são para um primário. O exotismo de silvícolas deve estar nos beatos alucinados, no sacrifício de crianças para limpar o mundo com o sangue dos inocentes, na barbárie dos cangaceiros, etc. Mas isso não aconteceu? Em 1940, apenas 24 anos antes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Corisco era morto e decapitado na Bahia, e centenas de beatos eram massacrados no Caldeirão. Só que isso não se passou na Gávea, em Ipanema e no Leblon, que devem formar o território de Marcelo Madureira. Então é exotismo de silvícolas. O reconhecimento internacional de Glauber é conseqüência, não causa, da sua grandeza. Ninguém soubesse quem ele foi e o que fez fora do Brasil, e a sua importância para mim e para todos os brasileiros que sabem ver cinema seria a mesma. Chamar Glauber de merda ou de chato - direito sagrado de qualquer um - me irrita profundamente como se chamassem da mesma coisa um Euclides da Cunha, um Villa-Lobos ou um Guimarães Rosa. Os maiores filmes de Glauber, além de serem monumentos da história do cinema, são algo mais, uma interpretação completa da nacionalidade. Vi Deus e o Diabo na Terra do Sol aos treze anos de idade, tive um dos maiores choques estéticos da minha vida, que se repete até hoje toda a vez que o revejo, o que já fiz várias dezenas de vezes. Ou eu sou uma besta completa para cinema, ou o Marcelo Madureira o é. O que é intocável é o seu direito de dizer a besteira que quiser – essa tão norte-americana mania de processos é a maior das desgraças – inclusive por que lhe cabe o prejuízo para a sua imagem diante de quem não concorda com suas besteiras. Mas, por tudo o que disse, graças a Deus ele não é crítico de cinema, embora não faltem outros dizendo coisas piores.

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