Saturday, November 29, 2008

 

Beato Salu e Match Point

(Assim é o Beato que andava sumido, com suas notas de rodapé. Agora com o novo filme de Woody Allen preferiu falar sobre o que viu na Globo, reprise do Match Point. Ele é como pedal de guitarra, efeito “delay” o que é bom pois as idéias ficam fermentadas e destiladas)


REFLEXÕES DESENCADEADAS PELA EXIBIÇÃO TELEVISIVA DE
MATCH POINT, DE WOODY ALLEN (TV GLOBO, 27.11.08)

Nas mésalliances[1], os ricos compram aos pobres (força de expressão: na realidade, classe média em suas diferentes subdivisões, a única com acesso aos escalões mais altos e esperanças realistas de união matrimonial, já que os verdadeiramente pobres, embora sempre conosco, estão fora da his/estória) a alegria, que esperam permanente, de sua gratidão, as famílias felizes que os mais humildes têm (ou que eles imaginam que tenham), porque unidas só pelo amor e não corrompidas pelo poder e pelo dinheiro, como as suas. do mesmo modo, os playboys ricos compram a beleza das modelos que namoram, nessa troca de ego por anatomia (que, dizia o saudoso cronista[2], é sinônimo de destino), de orgulho por dinheiro, em que tudo é vaidade. Prostituição voluntária, ou todo mundo é o lenão[3] inconsciente de si próprio, pelo menos até quando, enriquecido por anos de bem-sucedido tráfico, arrivistas finalmente arrivés, completam sua ascensão social e caem, ao fim, na fatal infelicidade dos que aparentemente podem comprar a felicidade — afinal de contas, como dizia o sábio da Aldeia Campista[4], “o dinheiro compra até amor verdadeiro”.

Scarlet Johansson representa um alter ego de si própria, uma atriz resgatada da mediocridade do esmaecido Colorado pela beleza, os lábios carnudos, negróides, leitmotiv de Allen, em desnorteante contraste com o rosto escandinavo, pura sorte genética, que atraem fatalmente seu amante, também ele egresso de uma pátria de derrotados (a Irlanda, rural, celta e católica, sinônimo de fracasso e derrisão para os nativos da Londres anglicana, cosmopolitamente anglo-saxã e financeirizada). Imagem em celulóide da Beleza, mercadoria sempre em alta, ativo acidental mais importante dos que não são filhos do privilégio econômico-social, fugaz, sim, mas a salvo, em sua breve existência, das oscilações do mercado.

No fecho, o filme lembra contos judaicos, Bashevis Singer, o problema moral reduzido à sua expressão mais essencial, o crime perfeito, a condenação unicamente na consciência, mas por toda esta vida (e mais outras, se houverem, pensariam os budistas). No caso, o puto é o homem, ambicioso e devasso, que primeiro perde sua racionalidade econômica pela volúpia do sexo, mas, ao final, recupera o juízo, mata o amor, fica com o dinheiro e vai ao teatro, ao contrário da amante que, ingenuamente, deixa um pelo outro e perde a ambos e a vida, enquanto ele fica com a bolsa e a culpa — para qual, porém, existem os ansiolíticos, ainda que pelo resto da existência, mas a preço (para ele, agora) módico. Crime sem castigo, e os ectoplasmas das duas vítimas, à diferença do colega pai de hamlet, são fantasmas inúteis nessa Dinamáquina, nessa Dinaimundo a girar eternamente podre, no qual, vaticina (citando Sófocles) o assassino agora culto, é melhor não ter nascido. No esplendor da City, só o que é ouro reluz, só o dinheiro gera o dinheiro, reprodução do capital ou do homem-Midas convertido em capital, e mesmo o emprego real do empregado relapso é ilusório em relação à verdadeira ocupação de marido charmoso da inglesa pleonasticamente sem graça, reprodutor cujo filho rico vive porque é o passaporte para sua nova vida, e cujo filho pobre não é sequer abortado, mas sacrificado no ventre de pobre mãe pobre, e por tabela. Permuta perfeita, pois, já que com ela se transfere não só renda, mas o karma da riqueza e do que se precisa fazer para conquistá-la ao longo de gerações, lavando-se assim dinheiro e pecados no sangue e no sêmen ávidos da ambição e da inveja, tão intensas que submetem até a luxúria, pecado aparentemente mais voraz. Não é bom estar aí, mas ficar aqui também não vale a pena, e a lição oculta e terrível dos mais aquinhoados aos wannabes. Tudo certo como dois e dois são cinco, pois, afinal, o livre-arbítrio é inútil, tudo já está escrito, e um lance de dedos e algo más jamais abolirá o acaso, não há alternativa à condição humana e sua existência em sociedade, Civilization (?) and its Discontents.

[1] Assim gaulesamente chamadas em indicação da origem social da expressão (nota do autocrítico, não necessariamente comunista).

[2] Paulo Francis.

[3] Afinal, como se chama o sujeito ativo do crime de lenocínio? Substituir por “cafetão”.

[4] Nélson Rodrigues, para quem não se lembra. Compreensível, pois o bairro, como o time do Andaraí, desapareceu.

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