Tuesday, July 06, 2010

 

Beato Salu no Futebol

GYAN, DE GANA, INSANO ABREU, O EGO E SEU CONTRÁRIO –
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A COPA DO MUNDO DE 2010

Uruguai e Gana, insólito jogo — ou match, como se dizia antigamente — de quartas-de-final da primeira Copa do Mundo realizada em solo africano. No último minuto da prorrogação, o momento fatídico: pênalti para Gana, em sua melhor atuação no mundial de futebol. Gyan, a estrela do time ganense, prepara-se para bater. Ele sabe que esta é a grande chance para fazer com que, pela primeira vez, uma seleção de um país africano passe pela primeira vez às semifinais da Copa. Sabe também, por outro lado, que, se errar, deixará sua seleção sem moral para a cobrança de pênaltis que se imediatamente seguirá para decidir qual das duas seleções ficará entre as quatro melhores do mundo. É, portanto, um homem só diante da história — senão a História Geral, ao menos a do esporte bretão. Quanto a nós, sabemos, ou não, que pênalti não é coisa que se perca, que é tão importante que devia ser batido pelo presidente do clube (Neném Prancha), que as chances do jogador em converter a cobrança são muito maiores que as do goleiro em defendê-las. Daí porque ninguém que entenda um mínimo de futebol entende aquele título do livro do Peter Handke, O Medo do Goleiro diante do Pênalti. A penalidade máxima — em alemão, simplesmente elfmeter, a distância da marca até a linha do gol — é, para o goleiro, uma oportunidade de ser herói, ao passo que para o cobrador representa apenas a possibilidade de, com um mau chute, dar um mau passo, pois pênalti não convertido é presunção absoluta de negligência.
O fim da história todo mundo já conhece – ou melhor, todos os milhões que assistiram à Copa, o que é metonímia de todo o mundo. Gyan perde o pênalti, e Gana, sua chance de ser o primeiro país africano... na primeira Copa.... etc. etc. Mais interessante, talvez, que esse ponto, raro mas não incomum em momentos decisivos, foi seu contraponto. O mui propriamente alcunhado Loco Abreu converte o último pênalti — que levaria o Uruguai de volta às semifinais de um mundial, 40 anos depois de fazê-lo pela última vez —, com sua clássica “cavadinha”, que antes contribuíra para o título de seu Botafogo contra o Flamengo, forma de cobrar pênaltis pela qual, ouvimos, teria sido criticado no México, pela aparente displicência dessa forma de cobrar algo tão importante como um pênalti, máxime (!) num momento tão decisivo para seu país. Como o louco do último ato do Rei Lear, o Insano Abreu mostra a Gyan e a todos que tiverem olhos de ver toda a verdade: mesmo na vitória, o futebol é apenas um jogo — e não só na derrota, como se apressam em lembrar os Galvões Buenos ou Malos e outras aves em extinção. Então , porque essa toda agitação que cega, todo esse medo que paralisa o pé, que faz mover mãos nem sempre de Deus, se o mundo é apenas uma bola que rola, se a vida toda é somente um jogo? “Olha só, olha o sol... O Maraca domingo”... Os velhos e os Novos Baianos e os Pernambucanos como Nélson Rodrigues já sabiam que o futebol é tudo menos imanente, está cheio de mãos de Deus ou com todos os diabos e Sobrenaturais de Almeida invisíveis rondando o gramado, tudo isso para construir um resultado que já se sabia há mais de 2.000 anos, como o gol de mão de Wilton contra o Flamengo no último minuto de um Fla-Flu lembrado apenas pela crônica genial. No ludopédio (!), todos os países e mitos estão representados, não precisa de psicanalista algum prá nos dizer o óbvio ululante: o futebol é o inconsciente de chuteiras. Mil demônios famintos se apossam do corpo de Gyan, esvaziado de terror ante a perspectiva do êxtase, e a Jabulani, apropriado nome que parece de divindade animista africana, caprichosamente – futebolístico advérbio! – bate no travessão e sai pela linha de fundo. De tanto falar em pais-de-santos e outros xamãs, em coisas primevas, me lembro da fantasia de um povo supostamente primitivo, cujos filhos não se deixavam fotografar por temor de que a câmera lhes roubasse a alma. Mas será que não rouba? Uma vez assisti, em um trailer de um documentário sobre futebol, a um fragmento de entrevista com Barbosa, o goleiro eternamente responsabilizado pelo Maracanazo de 1950. Parecia uma sombra de si próprio, de tal modo a ausência absoluta de auto-estima era sua única presença, apologético até o final dos tempos, como se pedisse eternamente desculpas por sua falha no gol sem ângulo de Gigghia. Se em todos os outros lances foi um bom goleiro, se foi um bom filho ou um bom pai, se madrugou no subúrbio para treinar na esperança de subir na vida e melhorar sua vida de proletário e negro brasileiro, nada disso importa. Dele a história só vai reter que falhou na hora H, quando não podia faltar, quando poderia redimir a si e a todos nós de nosso suburbanismo local ou mundial, de sermos negros num mundo de brancos, subdesenvolvidos, pobres e derrotados em tudo, mas podendo, naquela hora, nos vingarmos, ao menos no futebol —que não tem importância nenhuma, ainda que, na copa e na mídia, ainda mais na ultramoderna, com seu zilhão de espelhos televisivos e internéticos, pareça ter toda. Após o chute do Louco estufar as redes de sua meta, Gyan, com seu choro convulso, talvez tenha se sentido o Barbosa de Gana, imaginando que o mundo guardará dele somente o retrato de seu fracasso, que é não só o de seu, mas de seu país e de toda a África. Ou seja, o contrário de seu / nosso duplo, o do filho do país que foi criado apenas para ser um algodão entre cristais, jogador desse time-enigma (o Botafogo), Abreu quem, no entanto, com seu deboche em forma de chute, Alienista de si próprio, liberou a si mesmo e fez ver a todos nós o mass-sanatório em que nos internamos, mostrando o que essa e todas as copas e troféus querem a todo tempo negar: que a vida verdadeira está além; dentro, talvez, do gol, mas sempre fora do desespero eterno do ego, esse pequeno argentino que mora dentro de nós, que queremos sempre sermos campeões em tudo como nossos amigos, mas que não somos sequer uma Pessoa, e que nem ninguém, nem coisa alguma nos redimirá nunca de nosso Nada, são apenas 11 metros, é só um segundo — em que, no entanto, a não-vida toda passa.

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