Friday, October 28, 2011

 

Guillaume Le Blanc

Mais louco é quem me diz
Por Carla Rodrigues | Para o Valor, do Rio

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"A Extração da Pedra da Loucura", de Bosch: pensamento de Foucault está sendo ameaçado por argumentos científicos que buscam configurar a loucura como um defeito no cérebro, diz Le Blanc

O filósofo francês Guillaume Le Blanc nasceu em 1966, cinco anos após Michel Foucault ter publicado "História da Loucura", livro cuja importância tem merecido comemorações e homenagens pelo seu caráter revolucionário. Foi a partir de Foucault que se modificou a maneira como a sociedade encara o louco, o estranho e todos aqueles que não podem enquadrados nas categorias de normalidade. Dedicar-se a estudar Foucault foi, para Le Blanc, perseguir o caminho do questionamento das estruturas de poder que promovem a classificação das vidas comuns em perigosas, submetidas, portanto, a estratégias de dominação que hoje, em um contexto de mudança nas formas de tratamento, está em franco processo de deslocamento.

Com Foucault, Le Blanc discute também as novas formas de normatização da vida, submetidas às razões médicas e aos interesses da indústria farmacêutica. "Temos que inventar novas formas de subjetividade que não se deixem capturar pelas razões médicas", defende.

Le Blanc é professor da Universidade Michel de Montaigne, em Bordeaux, onde também mantém um grupo de pesquisa sobre medicina e suas relações com a vida social. Na próxima semana, participará em São Paulo do VII Colóquio Michel Foucault, promovido pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) em comemoração dos 50 anos do livro de Foucault.

Autor de livros consagrados a estudar essas figuras de precariedade que inspiraram a obra de Foucault ("Vidas Ordinárias, Vidas Precárias", 2007; "Dentro/fora - A Condição do Estrangeiro", 2010; "O Que fazer da Nossa Vulnerabilidade", 2011), Le Blanc acha que a força do pensamento de Foucault está sendo ameaçada pelos argumentos científicos que buscam configurar a loucura como um defeito em uma parte do cérebro. "É um risco grande", diz ele nesta entrevista.

"Temos que inventar novas formas de subjetividade que não se deixem 'medicalizar' e façam uma crítica das razões médicas"

Valor: Qual é a atualidade de "História da Loucura", 50 anos depois?

Guillaume Le Blanc: As coisas mudaram depois do livro de Foucault. O sistema manicominial, criticado por Foucault nos anos 1960, já não parece capaz de conter os selvagens de hoje. O que é a loucura atualmente? É o clamor inquieto de um grupo de sem-teto que precisa ser abrigado em dispositivos de cuidados sociais? É o silêncio do prisioneiro em sua cela? É a rua, essa é a prisão? O medo do louco é reavivado a partir de seus supostos perigos e o manicômio não parece ser capaz de responder plenamente a esse medo. O que se assiste agora é a uma multiplicação de dispositivos de controle, nos quais a loucura parece se disseminar em um grande número de estruturas, promovendo novas confusões entre o louco, o pobre e o criminoso.

Valor: O livro de Foucault marca o início de um movimento antipsiquiátrico para mostrar que o conceito de loucura é uma construção. O senhor acredita que esse movimento conseguiu interrogar os manicômios e suas condições?

Le Blanc: Houve de fato uma associação muito rápida entre Foucault e a antipsiquiatria. Mas nem o gesto de [Philippe] Pinel de liberar os loucos nem o gesto antipsiquiátrico de tirar os loucos dos manicômios seriam suficientes, para Foucault, como estratégia de anular as formas de saber e de poder que construíram a loucura e seus dispositivos terapêuticos e sociais. O trabalho de Foucault se inscreve numa história da contestação das linhas divisórias entre o normal e o patológico. Ele questionou o tipo de separação que nossas culturas ocidentais modernas produziram entre loucura e razão. Desde o seu primeiro prefácio, ele argumenta que seria preciso fazer uma "história dos limites, dos gestos obscuros, necessariamente esquecidos ou ocultos, com os quais uma cultura rejeita qualquer coisa que lhe seja exterior". Parte da crise atual do hospital psiquiátrico também se explica pela retomada dos discursos da biologia do cérebro e do afastamento da psiquiatria em relação à psicanálise. A tarefa que me parece urgente é pensar a disciplina numa situação de crise da disciplina. Trata-se de governar os indisciplinados? Se é assim, a disciplina tende a se expandir para estruturas sociais anônimas, como a rua, ou mais arcaicas, como a prisão.

Valor: Quais são as consequências, ainda hoje, de pensar a loucura como construção histórica e cultural?

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Guillaume Le Blanc: "A psicanálise deve voltar a ser uma arma de crítica social. As pessoas não querem mais ter a cabeça governada por novos saberes ou novas formas de polícia"

Le Blanc: Foucault nos permitiu compreender que antes de tudo há um indivíduo que incomoda, alguém com quem não se sabe o que fazer e abala nosso ideal de humanidade. Esse potencial do pensamento de Foucault está sendo ameaçado pelas novas tentativas, todas muito científicas, de recolocar a loucura dentro de uma parte do cérebro e assim renaturalizar o louco como esse indivíduo cujo cérebro está desajustado. O risco, hoje, é de "biologizar" de novo o louco e assim perder os seus contornos sociológicos e antropológicos. É um risco grande. A loucura instalada numa área do cérebro novamente justifica a circunscrição do louco como o anormal.

Valor: Tomando como referência o grande número de diagnósticos de depressão, síndrome do pânico e transtorno de ansiedade, o senhor acha que escrever uma história da loucura, hoje, seria interrogar os discursos médicos sobre essas doenças?

Le Blanc: É uma questão muito importante. Estudando a história da formação do saber em relação à história da formação dos poderes, encontraremos um domínio no qual as fronteiras entre o normal e o patológico são particularmente frágeis. Trata-se de pensar sobre as implicações sociais e éticas das análises históricas numa proporção que Foucault talvez não tenha podido explicitar totalmente. Um exemplo: a construção da criança como sujeito potencialmente patológico, hiperativo, e a conexão desses saberes sobre a hiperatividade com o domínio muito poderoso da indústria farmacêutica e o uso da ritalina. Quando a criança é declarada hiperativa, o diagnóstico dado pelo médico é acompanhado de uma prescrição farmacêutica sem precedentes, na qual o alvo é uma população inteira de sujeitos. O que fazemos diante desse poder e desse saber? Queremos ser governados como esses pais que se tornam intermediários do poder farmacêutico e garantem a "medicalização" do poder familiar? Não se trataria de organizar outras narrativas da vida infantil, outros modos de educação que teriam a tarefa de rejeitar essa "medicalização" excessiva sobre nossa vida? Temos que inventar novas formas de subjetividade que não se deixem "medicalizar" e façam uma crítica das razões médicas.

Valor: Quais são as consequências políticas do reconhecimento de que a distinção entre o normal e o patológico é uma forma de enquadrar aquele que aparece como o estranho, o Outro. O que há de profundamente ético no livro de Foucault é a percepção de que o Outro, o estranho, o estrangeiro, só pode ser definido por um discurso?

Le Blanc: Sou um estudioso das figuras sociais da alteridade, sobre as quais escrevi em meus livros. Observo que a alteridade não é uma figura neutra a ser simplesmente reconhecida. O outro é, antes de tudo, aquele que é tornado outro por uma comunidade de sujeitos que se supõe ao lado da norma. O precário tende a se tornar outro como parte de um trabalho de integração que precisa apontar para o que está fora do grupo. O estrangeiro é o sujeito que o grupo considera não fazer parte da nação, ele é usado como instrumento de constituição do grupo. É preciso compreender que o fato de apontar para uma determinada vida como a que representa o outro é uma forma de recusar a sua alteridade, a sua vulnerabilidade. O que aconteceria se nós vivêssemos com a percepção de que somos também precários, estrangeiros, vulneráveis? Apenas com uma atitude ética de não violência que reconhece a violência das nossas exclusões poderíamos assumir uma alteridade que não seria sinônimo de injúria, mas o reconhecimento da pluralidade de formas de vida.

Valor: "História da Loucura" foi um livro homenageado ao longo de todo o século XX. No congresso de comemoração do 30º aniversário de sua publicação, uma grande controvérsia em torno do trabalho de Foucault foi protagonizada pelo filósofo Jacques Derrida, ao afirmar que o trabalho de Foucault não poderia ter sido escrito antes da invenção da psicanálise e da formulação freudiana do conceito de inconsciente. Derrida propunha, então, fazer justiça a Sigmund Freud. Em que medida as críticas de Derrida eram pertinentes?

Le Blanc: Acredito que teremos que ler de outra forma os pensadores dos anos 70, como Foucault, Derrida e todos aqueles que parecem ter participado de uma prática filosófica como contracultura, como uma tentativa de não ser totalmente governado pelas normas dominantes. A psicanálise foi um discurso hegemônico nos anos 70, lugar que não ocupa mais hoje, diante do poder do paradigma naturalista nas ciências da psiquê. Ser justo com Freud, segundo a célebre formulação de Derrida, significa que a psicanálise deve ser questionada também como um dispositivo, como Foucault demonstrou em "As Palavras e as Coisas". Mas isso supõe que a psicanálise faça justiça a Foucault, aceitando questionar os pertencimentos simbólicos que ela põe de maneira excessiva nos sujeitos, com um discurso de ordem ou de lei particularmente insuportável. A filosofia de Judith Butler se constitui numa boa maneira de fazer justiça, ao mesmo tempo, a Foucault e a Freud. A psicanálise deve voltar a ser uma arma de crítica social. As pessoas não querem mais ter a cabeça governada por novos saberes ou novas formas de polícia.

Valor: Já que o senhor mencionou a filósofa americana Judith Butler, muito bem recebida na França, onde muitos de seus livros são traduzidos: acredita que a atualidade do pensamento dela é justamente a sua capacidade de criticar os limites de pensadores franceses dos anos 70? É curioso, ou pelo menos irônico, que essa crítica venha dos Estados Unidos?

Le Blanc: O primeiro livro de Judith Butler traduzido na França foi "A Vida Psíquica do Poder", no qual ela se inspirou em Foucault e em Derrida. Ela propõe um diálogo com a psicanálise de Jacques Lacan e de Freud, fazendo cruzamentos de leitura inéditos na França. Para mim, ela é o relançamento de uma crítica social ao fazer uma análise das produções de si dentro das normas, especialmente nas normas de gênero. A originalidade do seu pensamento está no fato de ela operar uma desconstrução não por uma libertação dessas normas, mas por uma forma de subversão que se elabora no próprio ato de atender a essas normas. As identidades, assim, não precedem o exercício da norma, mas é esse exercício mesmo que acaba por criar as identidades. A repetição das normas está sempre acompanhada da possibilidade de subvertê-las. Existem nas universidades americanas, não nos departamentos de filosofia, mas nos de literatura e ciências políticas, novas maneiras de fazer filosofia que se inspiram no pensamento francês dos anos 70. Talvez seja outra América.

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